Jeferson Bacelar2
Mário Gusmão foi o maior ator negro da Bahia no século XX. Participou de dezenas de peças de teatro, fez dezesseis filmes, participou de novelas e seriados na televisão brasileira, além de inúmeros espetáculos de dança. Nascido baiano, negro e pobre, teve a região de origem, a raça e a classe como marcas constantes na sua caminhada. Poderia ter sido apenas Mário do Nascimento e, provavelmente, seria como os tantos brasileiros e baianos que nasceram e morreram anônimos. É verdade que Mário Gusmão nasceu e morreu pobre, o que traz à tona a forma como são tratados muitos negros na sociedade brasileira; porém, a sua performance artística permitiu-lhe a construção de uma visibilidade e luminosidade que transcenderam os habituais limites impostos aos dominados na vida social.
Quando comecei o meu trabalho tendo Mário Gusmão como protagonista, eu estava convicto da “aventura” que seria realizar a história de uma vida. Entretanto, vários elementos apareciam de forma estimulante. Observei que, apesar da ampla bibliografia acadêmica sobre o negro no Brasil, o mesmo como sujeito e protagonista de uma historicidade, com a valorização de sua biografia e subjetividade, assim como a apreensão da forma como o racismo operava no plano das relações individuais, permanecia pouco representado no interesse dos pesquisadores e nessa bibliografia.
Mário Gusmão, entre outros aspectos, me permitiria tratar do ponto crucial da Sociologia e Antropologia, ou seja, a relação indivíduo-sociedade, enfatizando, a partir do quadro teórico estabelecido, a minha opção pessoal. Ela seria o ponto de partida para a análise dos diversos aspectos de sua trajetória, evidenciando diversas questões – formas de sociedade, tipos de agentes, papéis sociais, campo artístico, desvio, entre outros – de expressivo significado para as Ciências Sociais. Porém, o que seria de se esperar, todos esses elementos teriam sempre como pano de fundo a análise de uma categoria específica, o negro na sociedade brasileira e baiana.
Entretanto, a esse plano teórico-metodológico ajuntavam-se as justificativas da escolha de Mário Gusmão. Primeiro: Mário Gusmão foi um negro singular, considerado diferente, excepcional aos olhos de seus contemporâneos. Segundo: não posso deixar de ressaltar também que um grande impulso para a realização da trajetória de Mário Gusmão foi o afeto e a admiração que eu sentia por ele. E uma questão fundamental advinha: a possibilidade de cair na idealização e no tom laudatório tão comum entre os biógrafos. E o que me fez superar o grande impasse foi a adição ao afeto do respeito por ele. E o respeito que sentia em relação a Mário Gusmão se constituiu em um forte antídoto contra a apologia e um caminho para a revelação de um homem de “carne, osso e sangue correndo nas veias”, com suas virtudes e fraquezas.
Tomei o partido de construir a trajetória de Mário Gusmão como um movimento temporal no espaço, uma sucessão de pontos diacrônicos percorridos de forma dinâmica e processual, buscando um holismo que se perfaz em vários mundos de forma desconectada.
Portanto, o primeiro tempo da vida de Mário foi marcado pela ambivalência, na medida em que experimentava as possibilidades de conversão para ser aceito individualmente no mundo dos brancos, mas sabia que não afastava o estigma da cor e da pobreza que marcava o seu grupo de origem. Uma certeza ficou: a educação era o seu caminho para melhorar de vida e quem sabe superar as barreiras de classe e raça estabelecidas para os negros da cidade de Cachoeira.
Elenco de Eles Não Usam Black-tie, com Mário Gusmão ao fundo. Acervo Teatro dos Novos
Devido à decadência da tradicional cidade do Recôncavo baiano, a família de Mário do Nascimento foi compelida a transferir-se para a “cidade da Bahia”, Salvador. É exatamente com a sua presença na metrópole regional que
Porém, Mário trilharia outros caminhos com “o encontro com o mundo artístico”. Ele mantinha a perspectiva de ascensão e integração no mundo dos brancos, através da “cidade das letras”, mas não dentro dos padrões convencionalmente escolhidos pelos negros baianos: tornar-se-ia um ator, uma profissão atípica naquele momento na Bahia.
Elenco de Huis Clos e O Pelicano. Acervo Teatro dos Novos.
Vários foram os motivos que o conduziriam ao teatro baiano, além da efervescência cultural de Salvador e de sua capacidade histriônica. Primeiro: era a possibilidade de estudar na prestigiosa Universidade da Bahia. Segundo: para um homossexual que fazia questão de manter em segredo a sua condição, o teatro era um ambiente de maior liberalidade e abertura para o exercício de sua sexualidade. Terceiro: tinha o apoio de um grupo de amigos – Carlos Petrovich e tantos outros – que o ajudariam na inserção no meio teatral.
Embora Mário Gusmão estivesse em um espaço especial da sociedade, a sua trajetória seguiu os padrões convencionais de muitos negros ascendentes brasileiros, ou seja, a infiltração individual para atingir o reconhecimento social no mundo dos brancos. E para isso precisou de um “senhor branco”, e de adotar normas comportamentais que o identificavam como um “negro diferente”, educado, polido, cortês, “quase igual a um branco”. Enfim, em 1971, havia atingido o ápice no mundo artístico baiano.
mas cedo percebeu que o estigma de “drogado” não o abandonava e já não tinha maiores convites do mundo do teatro. Desconfiado, ansioso, confuso, buscou como recurso o auto-isolamento. Vivera a utopia, e agora enfrentava a dura realidade da sua condição racial e de classe.
Com a ajuda de amigos, terminou indo morar no bairro central da Vitória, onde se envolveu com a mobilização da nova juventude negra – “O admirável mundo novo” – da qual não se afastaria até o fim dos seus dias. E, por sua vez, retornou ao mundo artístico, de forma paralela às correntes dominantes (brancas), através da parceria com seu amigo, o artista americano Clyde Morgan. Se, para Mário Gusmão, por um lado, o seu drama na contracultura trouxe à tona a sua condição de classe e racial, por outro, com Clyde iria se afirmar o seu vínculo com a cultura afro-brasileira, sobretudo em relação ao candomblé. Clyde Morgan o ajudou a reafirmar as potencialidades do uso do seu corpo, passando Mário a identificar na dança um símbolo de liberdade e valorização da negritude. Fizeram inúmeros espetáculos entre 1975 e 1976, e neste último ano Mário Gusmão participou do filme Dona Flor e seus Dois Maridos, um grande sucesso de bilheteria no Brasil. No ano seguinte realizou um dos seus sonhos: a viagem à África Ocidental para participar do Segundo Festival Mundial de Artes e Culturas Negras, em Lagos, na Nigéria. Quando retornou da África continuou suas atividades artísticas e em 1978, participou do filme Chico-Rei, de Walter Lima Júnior. E, logo após teria uma triste notícia: o dançarino americano retornava para os Estados Unidos. A viagem de Clyde Morgan seria um duro golpe para Mário Gusmão, uma vez que, além do apoio, inclusive financeiro, do amigo, perdia o seu “produtor”, responsável por sua presença nos palcos baianos. A partir de 1979, sem oportunidades no meio artístico, morando no bairro do Pero Vaz, Mário Gusmão aproximou-se cada vez mais das camadas populares e dos grupos culturais negros.
Cena de Chico Rei. Acervo Mestre Didi e Juna Elbein
Em 1980, foi convidado a participar em um pequeno papel, naquele que seria o último filme de Glauber Rocha: A Idade da Terra. Significava prestígio mas, lamentavelmente, muitas vezes, como no seu caso, prestígio não enche a barriga de ninguém. Agravava-se uma situação que não abandonaria Mário até o fim dos seus dias: a questão de garantir o mínimo de condições para sua sobrevivência. Isolado, vivendo de favores de amigos como Macalé, Ericivaldo Veiga e uma família de jovens da vizinhança, estava em completo desespero. O próprio Mário não soube como o grande romancista Jorge Amado tomou conhecimento de sua situação. Soube sim, de sua carta e de Calasans Neto para o Prefeito de Ilhéus, pedindo um emprego para Mário Gusmão.
Em fevereiro de 1981, Mário Gusmão chegou à cidade de Ilhéus, microrregião cacaueira do sul da Bahia, contratado pela Secretaria de Educação e Cultura, como professor de ensino médio. Ali avançou o seu olhar para a riqueza cultural das classes trabalhadoras e tornou-se o impulsionador, com a criação de vários grupos culturais de afirmação da negritude. Em 1983, foi contratado pela Prefeitura de Itabuna para ser Coordenador de Programa. Na prática, segundo o grande ator Carlos Betão, ele seria o Chefe do Departamento de Cultura do município. Por sua vez, tornou-se uma referência para as atividades artísticas, formando toda uma geração de jovens talentosos, apaixonados pelas artes cênicas. Mário Gusmão exerceu em Ilhéus e sobretudo em Itabuna, um papel catalisador, aglutinando, incitando, despertando talentos e consciências, semeando cultura e política entre os jovens. A ponto do hoje famoso ator Jackson Costa afirmar: “Eu costumo dizer que a minha escola foi Mário Gusmão”.
Em 1984, a Câmara Municipal de Salvador, através dos seus setores progressistas, concedeu o título de cidadão de Salvador ao ator Mário Gusmão. Ele ficou entusiasmado com a homenagem, afinal, não tinha sido esquecido.
Mestre Coca3, um personagem popular e de muita dignidade. Conheceu Angola em 1988 e tornou-se professor de artes cênicas e conselheiro de várias organizações negras, em especial do Olodum. Entretanto, com a mudança do governo municipal e a sua demissão em 1989, vinha à tona as marcas da dura realidade. Com 60 anos, sem oportunidades no teatro e sem qualquer base material, retornou o seu problema fundamental, ou seja, a sobrevivência. Cada vez mais envolveu-se com as organizações do mundo negro, o que lhe enchia de orgulho por ajudar o seu povo, mas a “sua barriga permanecia vazia”. A fome rondava a tal ponto o seu cotidiano que, nos finais de 1992, um grupo de amigos negros do mundo musical realizou um “show” beneficente para o velho ator. E, a partir de então, embora ainda tivesse participação em pequenos papéis no cinema, televisão e em eventos institucionais importantes, na realidade, ele tornou-se uma referência histórica no meio artístico e na sociedade, considerado e respeitado, mas passando em grande parte do tempo a viver dos favores dos amigos.
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Em 1993, sem opções profissionais, convidado por seu amigo dançarino Firmino Pitanga, partiu para São Paulo para trabalhar com seu grupo de dança Bata Koto. Mas não demorou muito por lá. Convidado por Sérgio Machado4, então um estudante de graduação do curso da Escola de Teatro da UFBA, para a realização de um vídeo, não relutou. E assim, em maio, já estaria em Salvador fazendo o vídeo Troca de Cabeça. O vídeo teve um elemento adicional: o reencontro com seu ídolo e grande amigo Grande Otelo. Participou, ainda em 1993, a convite de Lia Robatto, do espetáculo de dança e teatro para a III Cumbre Ibero-Americana de Chefes de Estado. Entretanto, como sempre nos últimos anos, acabado o evento, ele voltava, com a fome sempre rondando, à rotina da Avenida Peixe.
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Em 1994, sabedor das dificuldades de Mário, com o apoio de Júlio Braga, iniciei o projeto Memória do Povo Negro, onde Mário seria o primeiro representante. Era uma forma de ajudá-lo, sem a humilhação do favor. Ele aparecia, desaparecia, mesmo assim nos mantivemos em contato até julho de 1994. Neste ano, a convite de Firmino Pitanga e ajuda de vários amigos, iria fazer um espetáculo de dança em Seul. Viria a encontrá-lo novamente em agosto de 1995, como apresentador do I Encontro Nacional de Vereadores contra o Racismo. Achei-o alquebrado, envelhecido e muito triste. Nesse mesmo ano, teria uma das suas últimas alegrias: participou da montagem de Zumbi Está Vivo e Continua Lutando, realizado nas ruas de Salvador, com o Bando de Teatro Olodum, sob a direção de Márcio Meireles. No espetáculo, aparecia o ator consagrado Mário Gusmão como Ganga Zumba, e um jovem promissor como Zumbi, Lázaro Ramos5.
Começava o ano de 1996, e Mário permanecia na Avenida Peixe, cada vez mais triste, infeliz e sem quaisquer perspectivas profissionais. Desesperado, fumando cigarros por mais de 40 anos, usando maconha por mais de 20, com problemas de pressão, deprimido e muitas vezes sem se alimentar, a doença não demorou a chegar aos seus pulmões. A sua dor terminaria no dia 20 de novembro de 1996, data nacional da consciência negra, dia da morte de Zumbi.
Jornal Bahia Hoje, 21/11/1996: morre Mário Gusmão. Foto Adenor Gondim.
Quis aqui demonstrar a condição de sujeito plural que norteou a existência de Mário Gusmão, analisando a sua condição de negro, homossexual, artista e “herói” do povo negro.
Tentei também mostrar a forma como se constituiu a sua identidade negra. Primeiramente, Mário não foi um militante no seu sentido restrito. A sua luta contra o racismo e a necessidade de valorização da negritude tinham como premissa uma sociedade democrática, onde negros e brancos pudessem viver juntos. E as suas práticas refletiam o seu pensamento, na medida em que sua sociabilidade jamais “guetificou-se” no mundo negro. Ele valorizava a sua “africanidade”, porém, isso não o levou a pensar na incomunicabilidade das culturas, nem tampouco no abandono da sua experiência com a cultura ocidental. Consequentemente, o candomblé foi sempre um componente do seu mundo simbólico – e tinha consciência da sua importância histórica – porém, jamais tornou-se um membro dos grupos de candomblé.
Mário descobriu a sua homossexualidade e encontrou no mundo artístico o espaço para o seu desenvolvimento. Entretanto, por variadas circunstâncias pessoais e conjunturais, sem negar a sua orientação sexual, tornou a sua sexualidade um componente privado, pessoal da sua conduta, jamais um elemento público ou uma marca de sua identidade. Mesmo com todas as transformações que advieram na década de 70, ele não modificou as suas posições em relação à homossexualidade. Muito pelo contrário, embora respeitando o “ativismo”, ele reafirmou a sua postura de não conceber a sua classificação social como homossexual ou gay. Para ele, o importante era a existência de prazer em tudo que se fizesse, onde o sexo era a “beleza da própria vida, a própria criação”.
Analisando a sua condição de artista, alguns pontos ficam marcados. Mário morreu pobre como a maioria dos negros brasileiros. E os motivos ficaram explícitos. Mário foi o ator “santificado” de Grotowski, ou seja, um ator contido no “desinteresse”, refratário a qualquer regra de acumulação. Mais: além de perdulário, exagerava na generosidade com seus amigos pobres; Mário Gusmão foi sobretudo um ator de teatro, não obstante a sua presença no cinema e na televisão. Nenhum dos atores contemporâneos de Mário – que permaneceram na Bahia – conseguiu viver do ofício teatral, sem uma atividade subsidiária ou sem capital econômico familiar. E Mário terminou ficando sem uma atividade permanente e jamais possuiu outras alternativas. Além disso, ele foi um ator regional, distante dos circuitos artísticos dominantes brasileiros.
Para complementar a outra faceta da sua vida, observemos a sua condição de herói do povo negro. Há um consenso entre as lideranças e intelectuais nativos da sua importância para a história contemporânea do negro na Bahia. Assim, ele não foi apenas um grande ator. Ele foi um desbravador, um abridor de caminhos para a presença negra nos palcos baianos. Foi, por sua vez, um modelo de como deve portar-se um ator negro, enfim, um intérprete do mundo negro conferindo-lhe dignidade. E também, foi um “renunciador”, alguém que abdicou ao sucesso fácil, à propensão comercial para permanecer com seu “povo”. Porém, além de um artista excepcional, Mário foi um homem sábio, iluminado, que passava seus conhecimentos para todos. Ele, por sua condição, por exemplo, transcendia as querelas e divisões que marcavam a comunidade negra. De certa forma, Mário foi um “mártir” para o povo negro. Na sua vida, a pobreza, a prisão, o exílio, mostram o caráter do seu “sacrifício”, o sentimento coletivo de um povo escravizado e oprimido. E, por fim, a sua morte no mesmo dia em que se relembra a morte de Zumbi dos Palmares, o que sacramenta simbolicamente a sua excepcionalidade. Entretanto, não deixo de considerar que a mídia e o próprio Mário tiveram papel considerável na sua heroificação.
Fragmento. Fotos: Maria Sampaio
Portanto, concluindo, neste trabalho tento demonstrar a impropriedade das análises “essencialistas e fixistas” em torno da identidade dos indivíduos, sobretudo nas sociedades complexas, sendo as mesmas marcadas pelo dinamismo, fragmentação e heterogeneidade. Enfim, vivências em universos diferenciados, perfazem o Mário Gusmão que “existiu”, a sua pluralidade e complexidade. Caracterizo que Mário Gusmão encontrou a sua excepcionalidade exatamente em ter acompanhado e participado de configurações históricas expressivas, tornando-se por sua capacidade de adaptação e criatividade, um elo entre gerações sociais e etárias de negros e brancos. E, assim, construiu sua liberdade e grandeza. Primeiro, por vincular sua vida aos movimentos sociais, marcando o caráter conflitivo da existência em sociedade, seja no mundo dos brancos, seja no mundo dos negros. Segundo, por rebelar-se contra a integração, resistindo aos poderes e à comunidade, afirmando sua vontade e condição pessoal. Foi sempre um rebelde às convenções estabelecidas, um subversivo, pois sem agressões, sem violência, foi um Príncipe Negro na Terra dos Dragões da Maldade.
Tribuna da Bahia, 22/01/1973. |
![]() Cartaz comemorativo dos 100 anos da Abolição |
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NOTAS
1 Este artigo é uma síntese do livro do autor, denominado Mário Gusmão: um príncipe negro na terra dos dragões da maldade. Rio de Janeiro: Pallas, 2006. Todas as fotos encontram-se neste livro.
2 Doutor em Ciências Sociais, Pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais e Professor dos Programas de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos e de Antropologia da Universidade Federal da Bahia.
3 Personagem de Antônio Pitanga no filme dirigido por Anselmo Duarte, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 1962.
4 Tornar-se-ia um brilhante cineasta. Foi Assistente de Central do Brasil, diretor de Cidade Baixa e Quincas Berro D’Água.
5 Lázaro Ramos é hoje um dos grandes atores brasileiros no teatro, cinema e televisão.