UM ACERVO PARA SE DANÇAR: A ARTE DE LIA ROBATTO
Suki Villas-Bôas Guimarães
Chegamos ao final da primeira etapa do projeto de catalogação e digitalização do acervo da artista Lia Robatto, viabilizado através do Edital Restauração e Digitalização de Acervos Arquivísticos Privados – 2014, da Fundação Pedro Calmon.1
O Fundo Lia Robatto constitui-se como o primeiro acervo digital em Dança produzido na Bahia. Inspirado na ideia de Arquivo Genético, o Acervo de Dança Lia Robatto2 tem a proposta de não somente guardar as obras finalizadas da artista e seu material representativo, mas também vestígios dos seus processos criativos, como fez a Universidade de Keyô, em Tóquio, desde os anos 2000, com os acervos do criador do Butô Tatsumi Hijikata e do escultor Iasamu Noguchi. O acervo é de natureza dinâmica, devendo ser alimentado continuamente com novas informações, uma vez que a artista continua produzindo. Propõe-se também a ser fonte para pesquisas, documentários e entrevistas, além de contribuir com diferentes parceiros em projetos artísticos, educativos e de outras naturezas.
O Acervo de Dança Lia Robatto, enquanto conjunto de documentos físicos e digitais reunidos, tratados, organizados, digitalizados e disponibilizados, além de retratar a trajetória pessoal da artista, pode ser concebido como fonte de informação e pesquisa sobre a memória da dança no Brasil, sendo um recorte singular e significativo da contribuição da Bahia neste contexto. Pode ser também (e pretendemos que seja) ignição para novas criações artísticas, estudos e pesquisas em Dança, (re)criações e diferentes possibilidades de conexões com o momento político, econômico, social, cultural e artístico, vivenciado na época da criação e apresentação das obras, e das diferentes atuações da artista.
O acervo está em processo de encaminhamento para cessão de guarda de seus documentos físicos pelo Centro de Memória da Bahia da Fundação Pedro Calmon, vinculada à Secretaria da Cultura do Estado da Bahia. Será disponibilizado em plataforma digital de livre acesso, pelo ICA-AtoM, que também poderá ser acessado offline, em servidores instalados no próprio Centro de Memória e no Memorial do Centro de Formação em Artes da Fundação Cultural do Estado da Bahia, entre outros locais que demonstrarem interesse e condições necessárias. |
Lia Robatto |
O acervo traz vestígios documentais da trajetória da artista, que inclui notações coreográficas de suas obras, textos inspiradores, pesquisas, esboços das partituras musicais, trilhas, figurinos, cenários e fotos de seus espetáculos, filmes, entrevistas, manuscritos, correspondências, entre outros documentos, retratando as atividades desempenhadas ao longo de sua carreira profissional como dançarina, coreógrafa, atriz, professora e pesquisadora em dança.
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Projeções, movimentos…
Esperamos que o Acervo de Dança Lia Robatto venha colaborar na formação de fluxos que contraponham e questionem a quase totalidade da literatura brasileira sobre a arte no século XX, que excluiu a dança cênica dessa trajetória, assim como a lacuna da Dança no âmbito da história cultural brasileira/baiana, situação que se apresenta, ainda hoje, como desafio para pesquisadores e para a produção do conhecimento em Dança.
Nessa mesma perspectiva, agora em relação à produção sobre a história da dança, pretendemos colaborar para que o acesso à informação sobre a arte da dança experimental e da produção independente desse segmento ganhe robustez e venha contrapor-se à produção sobre dança clássica, mais abundante e quase totalmente preponderante até os anos 2000.
Os programas de fomento voltados para a memória da Dança em suas diferentes configurações artísticas são quase inexistentes. Mas iniciativas diversas vão, aos poucos, sendo realizadas. Porém, num contexto ainda de acentuada desproporcionalidade em relação à frequência e ao número de programas de fomentos públicos ou privados voltados para a produção e/ou circulação de espetáculos. Esses também são insuficientes frente à demanda existente, mas são mais estabelecidos e carregam discussões e encaminhamentos que os situam num ambiente de diversidade artístico-criativa e de ampla conexão com a experiência do fazer Dança. É nesse ambiente de inúmeros desafios e antagonismos que foi organizado – e ainda está sendo, já que é um acervo em constante alimentação – o Acervo de Dança Lia Robatto.
Na Bahia (e no Brasil), embora prevaleçam os desafios quanto à produção da memória da Dança, aos poucos iniciativas vão se concretizando. Uma das primeiras na Bahia são os livros, da própria artista Lia Robatto: Dança em Processo, a linguagem do indizível, de 1994, e Passos da Dança (com Lúcia Mascarenhas), de 2002. Nos anos 2000, em Salvador, já é realidade a organização do Memorial da Escola de Dança da UFBA, a partir de 2006, e o projeto Memória da Dança, do Programa Pró-Dança da FUNCEB, em 2007, entre outras iniciativas independentes e acadêmicas, reforçadas pelas significativas contribuições dos programas de Pós Graduação, a exemplo do PPG/Dança/UFBA e do PPGAC/UFBA, que resultaram em publicação de livros, sites, filmes e outras produções que, reunidas às ações criativas já em curso, aos poucos vão transformando o cenário lacunar.
Esses esforços apontam para a construção de um lugar de potência que se nutre da memória local da dança, no sentido trazido por Pierre Nora (1993)3: um lugar, a partir de um desejo de memória, que expresse o anseio de retorno a ritos que definem os grupos, a vontade de busca do grupo que se auto reconhece e se auto diferencia, o movimento de resgate de sinais de appartenance grupal, existentes na vivência simbólica daqueles que fazem a Dança na Bahia (e no Brasil) e da população local. Para garantia desses lugares de memória, entretanto, torna-se urgente uma transposição dos acervos pessoais, nem sempre preservados devidamente e mantidos como um bem de enorme importância simbólica, para acervos com acesso público e gratuito e com guarda responsável. Para tal, torna-se urgente a criação de Programas nas Políticas Públicas que, compreendendo as especificidades da Dança e de sua memória, atuem no fomento a esse eixo de produção.
GALERIA. (Clique na imagem para ampliá-la)
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LEGENDAS DAS IMAGENS
(Visualizar de cima para baixo, da esquerda para direita)
Obs.: Todas as imagens pertencem ao Acervo de Dança Lia Robatto
GALERIA:
NOTAS
1 O projeto Acervo de Dança Lia Robatto foi viabilizado através do Edital Restauração e Digitalização de Acervos Arquivísticos Privados – 2014, do Governo Estadual da Bahia, através da Secretaria de Cultura/Fundação Pedro Calmon. Contou com o apoio institucional da Escola de Dança/Centro de Formação em Artes/FUNCEB, e apoio incondicional de Beth Rangel, Virgininha Costa e Marle Macedo. Agradecimentos a Tereza Oliveira, amigos e colegas da Dança, família Lia-Silvio Robatto, Kátia Melchiori, professor Sergio Franklin Ribeiro da Silva e funcionários da Escola de Dança/ CFA/FUNCEB. O acervo tem previsão de ser disponibilizado ao público a partir de julho de 2016.
2 O Acervo foi desenvolvido por uma equipe multidisciplinar: Consultoria Técnica de Arquivo: Aurora Freixo; Execução Arquivística: Ivana Severino; Curadoria e Contextualização histórica e artística: Suki VB Guimarães; Consultoria de Memória: Lia Robatto; Produção Executiva: Cândida Xavier; Estagiário: Felipe Nogueira.
3 Pierre Nora. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”, In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Conselho Nacional de Arquivos. Recomendações para digitalização de documentos arquivísticos permanentes. 2010. Disponível em <http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/media/publicacoes/recomenda/recomendaes_para_digitalizao.pdf> Acesso em 20/04/2015.
Manuelina Maria Duarte Cândido. Ondas do Pensamento Museológico Brasileiro. São Paulo, 2000. Monografia (Especialização em Museologia) – Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, 2000.
Conselho Internacional de Arquivos. ICA-AtoM: Manual do usuário. 2011. Disponível em <https://www.ica-atom.org/doc/User_manual/pt>. Acesso em 18/02/2015.
Fundação Getúlio Vargas. O que são arquivos pessoais. Disponível em http://cpdoc.fgv.br/acero/arquivospessoais>. Acesso em 25/02/2015
Christine Greiner. 2002. “O registro da dança como o pensamento que dança”. Revista D’Art, v. 4: 38-43.
Jacques Le Goff. História e Memória. 4ª edição. Campinas: Unicamp, 1996.
Pierre Nora. “Entre história e memória: a problemática dos lugares”. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.
Cecília Almeida Salles. Gesto Inacabado. 5ª edição. São Paulo: Intermeios, 2011.
Marcio Seligmann Silva. Sobre o anarquivamento – um encadeamento a partir de Walter Benjamin. Disponível em: 1http://www.poiesis.uff.br/p24/pdf/p24-dossie-3-.pdf. Acesso em 12.12.2015.